Mark






Vista grossa


por Paula Borghi

Muitas das expressões linguísticas fazem referência às características próprias do local em que se encontram, em decorrência, sobretudo, das nuances culturais, sociais e políticas que as perpassam. São modos de dizer que se comportam como sintomas regionais, que dificilmente conseguem ser traduzidos para outro idioma, quanto mais manterem seus significados simbólicos e semânticos em outra língua. Isso porque, algumas dessas expressões nada mais são do que arranjos de palavras que vêm ao mundo com o intuito de palavrear aquilo que até então era inefável ou que não pode ser dito com suas próprias palavras.

Ao traduzir para o inglês o título da exposição tem-se “View thick”, ao pé da letra, e “Turn a blind eye”, por uma tradução mais sensível ao seu significado expressivo. De modo que, ao se mudar a perspectiva do local, a expressão “vista grossa” no Brasil pode ser completamente diferente de “turn a blind eye” nos EUA, por exemplo. Pois por mais que ambas comuniquem um mesmo assunto, a divergência do entendimento sobre elas é capaz de constituir um abismo abissal naquilo que está subentendido em cada cultura. Não há dúvida de que em qualquer pais do mundo pode-se fazer vista grossa, mas isso não significa que esta será feita da mesma forma. 

Para além das subjetividades que constituem as características regionais, cabe mencionar o tempo enquanto determinante para a compreensão de determinadas expressões. Por exemplo, fazer vista grossa em um mesmo local nos dias de hoje é completamente diferente do que há dez anos atrás. Já, fazer vista grossa em locais e temporalidades distintas faz com que seus entendimentos sejam outros. Assim como na física, tempo e espaço agem juntos no mundo e em sua leitura.

Ao encontro desta percepção, vale mencionar que toda a exposição foi pensada e criada durante um dos períodos mais críticos que a humanidade sofreu nos últimos tempos. Vista grossa, pelas lentes de Edgar Racy, se dirige a uma compreensão sensível do mundo, em que comer é necessidade primeira da existência humana. Partindo do ato de comer como uma luta diária - uma luta pela sobrevivência - o artista enfatiza o tema com poucas palavras: “Não é nada mais do que a fome”.  É a partir deste ponto de fricção comum que abarca a humanidade como um todo, que a exposição problematiza a fome enquanto emergência crucial a ser combatida para a preservação da vida.

Assim como na história da humanidade, o tema da fome é um assunto que atravessa a produção artística de Edgar Racy há tempos. Faz-se urgente abordar a questão com mais ênfase, sobretudo por meio desse sentir sensível das urgências do mundo diante desse espaço e tempo de crise humanitária. Uma crise de doer a barriga, de sentir o estômago se contrair por estar vazio. Foi a partir da empatia que tocou seu estado de espírito, que o artista desenvolveu os trabalhos aqui presentes.

Atentando-se ao mapeamento dos dez países mais famintos do mundo, numa pesquisa realizada nos anos 2019 e 2020 pela plataforma online “Focus Economics”(renda per capita), que Edgar Racy tomou como ponto de partida os dados levantados para a realização da série Vista grossa, homônima desta sua individual. Congo, Moçambique, Uganda, Tajiquistão, Iêmen, Haiti, Etiópia, Tanzânia, Quirguistão e Uzbequistão, nesta mesma ordem, são os dez países em que a fome é o principal afeto que perpassa a vida de sua população; compreendendo afeto como verbo, como ação determinante para se viver.



Utilizando materiais relacionados à alimentação e à habitação, duas das necessidades básicas da vida humana, garrafas de vidro, pratos, tijolos, telhas e carvões moídos sobre lonas desgastadas e remendadas

(geralmente usadas para a construção de abrigos) dão corpo às bandeiras de Edgar Racy. Seguindo uma estética própria do artista, que combina abstração geométrica e palavras, letras feitas de madeira escrevem o nome do principal idioma do respectivo país de cada bandeira e a palavra fome segundo sua linguagem. Uma vez mais, a referência da linguagem enquanto um sintoma regional, dado que tanto a vista grossa, como a fome, variam conforme o tempo e espaço. Uma vez que todos os humanos são capazes de sentir fome, mas não há como comparar o que significa fome atualmente no Congo e na Bélgica, por exemplo.

Assim, se por um lado tem-se a fome, por outro tem-se a abundância; uma vez que ambas são co-dependentes dentro de uma economia neoliberal. Trata-se da abundância associada ao desperdício e aos demarcadores gritantes de desigualdade social, posto que existe alimento suficiente no mundo para ninguém passar fome. Poderia-se dizer que alguns países fazem mais vista grossa a fome do que outros? Ou que alguns países fazem mais vista grossa a fome quando não é em seu país?

A fim de evidenciar os extremos desse cruel sistema neoliberal, Edgar Racy apresenta a série Via Fondazza, com treze trabalhos realizados com garrafas de vidro, pratos, tijolos, telhas e carvões moídos aplicados em juta pintada com gesso sobre placas de alumínio. Inspirada nas pinturas de natureza morta de Giorgio Morandi (1890-1964), um dos maiores pintores italianos do século XX, esta série faz referência às imagens de garrafas, de caixas e de esferas; alguns dos objetos pintados exaustivamente pelo artista. Tendo como homônimo a rua onde Giorgio Morandi tinha sua casa/ateliê em Bolonha, na Itália, a série Via Fondazza, tem seus trabalhos numerados conforme os números das casas vizinhas ao ateliê do artista.

A respeito desta sensação antagônica que a exposição sugere, Edgar Racy menciona: “São trabalhos tão distantes uns do outros, que você nem imagina que uma pessoa que está lá no Congo, vamos dizer, vai pensar que um dia alguém vai colocar aquela garrafa e aquele copo em cima de uma mesa e fazer uma pintura. E que aquela pintura será vendida por um valor maior do que se fossem vendidas todas as casas de uma vila congolesa. Então esse contraponto, essa ligação que não existe, cria uma conversa na minha cabeça.” Como se houvesse uma linha que conectasse, mesmo que por meio da impossibilidade, o tempo e o espaço presentes em Via Fondazza  e Vista Grossa.

É com um olhar atento à dissolução dos direitos básicos da vida humana, que esta exposição fala sobretudo da fome proveniente de tanta desigualdade social. Dando luz àquilo que se faz evidente a cada esquina, embora muitos sigam a fazer vista grossa, a exposição é um convite sutil e poético para se estar atendo às urgências do mundo.



“Pátria Amada?”: ou uma canção do exílio particular.

Taisa Palhares

A primeira visão de “Pátria amada?” de Edgar Racy sugere para o observador a aplicação lúdica da disciplina construtiva, em que formas geométricas se repetem em pequenos conjuntos de diferentes sequências combinatórias, criando a sensação de um jogo no qual o trabalho teria seu sentido revelado. Mas a delicadeza e a sutileza desses pequenos desenhos enganam: depois do primeiro estímulo visual, num olhar detido e aproximado, percebe-se a existência de palavras livremente impressas em baixo relevo acompanhando cada composição. “Amor eterno”, “Braço forte”, “Brilhou no céu”, “De amor”, “Dessa igualdade”, “Essa grandeza”, “Idolatrada”, “És tu Brasil”, “No teu seio”, “Ó liberdade”, “Nossos bosques”, “Terra adorada”, entre outras, trazem à mente o hino pátrio, assim desconstruído e reorganizado numa nova sequência aleatória. Esses fragmentos de frase, quase como ruínas de uma paisagem fictícia, produzem de imediato imagens por meio da música que evocam: breves instantâneos de uma promessa de país, como um desejo acalentado por muito tempo, e que se encontra em desmonte.

Por isso, não consigo deixar de pensar nesse trabalho como uma nova canção do exílio, na qual Racy registra, ao repetir as palavras tão banalizadas do hino nacional, o sentimento de luto e melancolia pela perda do lugar, “a pátria amada”, que não existe mais. No entanto, o trabalho não deixa de ter um certo humor. A partir das formas geométricas da bandeira do Brasil (o retângulo, o losango e o círculo), Racy inventa paisagens pela combinação casual dos três elementos que, reconfigurados, carregam uma ambiguidade aberta a um futuro, no mínimo, de outras possibilidades.

Desde seus trabalhos anteriores, o artista explora a materialidade das obras pela reutilização de resíduos (plástico, vidro, serragem, telhas, tijolos, tecido, entre outros), que são manipulados até perderem seu aspecto reconhecível, para enfim servirem como matéria para construção de pinturas, esculturas e desenhos quase minimalistas. No caso da série em questão, Racy escolhe trabalhar com carvão, o que não deixa dúvida sobre as implicações políticas do trabalho. Rico em carbono, por um lado o carvão remete ao grafite e tinta negra utilizada para impressão de gravuras, sendo um material presente há muito tempo na história da arte para produção de inscrições e figuras1. Por outro lado, enquanto combustível o carvão é símbolo da revolução industrial iniciada no século 18, e que culmina hoje com a destruição total do meio ambiente. Além disso, é preciso lembrar que nos últimos dois anos as florestas brasileiras sofreram queimadas criminosas que resultaram em um índice elevado de desmatamento. Neste sentido, para alguém que vive no Brasil hoje, a cor e a textura do carvão remetem às cinzas de madeira e às nuvens de fumaça negra que invadiram as cidades brasileiras nos últimos anos.

Com a série “Pátria amada?”, Edgar Racy reafirma sua capacidade de sintetizar, a partir do deslocamento preciso de materiais, formas e referências relativamente prosaicas, um sentido político para a arte. Sem recorrer a grandes discursos eloquentes ou tentativas de análises históricas engajadas, sua obra responde aos problemas do presente mediante um olhar sutil, aberto às fissuras de um mundo que ainda pode mudar de rota.

1 Lembramos que a “arte rupestre” já utiliza o carvão como material artístico.


Sobre materiais e singularidades formais em Edgar Racy

Ana Avelar

Edgar Racy maneja como material para o trabalho artístico os resíduos resultantes da produção industrial, tocando um assunto deveras incômodo em tempos de revisão do padrão de consumo contemporâneo. Racy emprega seu olhar interessado pela forma para metamorfosear o material, em outras palavras, trata-se de um artista que lança mão da inteligência formal para subverter essa mesma inteligência ao utilizar nessa operação sobras apropriadas do descarte.

Sua compreensão da beleza passa por um olhar que desloca e, frequentemente, descasca o objeto primeiro, revelando sua estrutura. Os objetos finais são elegantes, às vezes complexos formalmente, algo curioso quando nos damos conta de onde provêm e de sua funcionalidade anterior.  
Nos bidimensionais, a operação é semelhante: um jogo surge ao descobrirmos os materiais que cobrem as telas, todos restos da vida cotidiana nos centros urbanos. Nossos rastros de civilizados. Sem as fichas técnicas, é difícil perceber que as telas estão cobertas de estilhaços de vidros de garrafas, pequenos pedaços de papel jornal, serragem, fragmentos de uniformes e cobertores, louças, telhas, tijolos, bitucas de cigarros, reduzidos até que fiquem descaracterizados e adquiram um aspecto sedutor, conferido pela cor, textura ou forma. Em alguns bidimensionais, a linguagem enxuta aparece nas palavras que podem configurar metáforas ou conferir sentido ao material. Surgem aí retratos e paisagens. Se os objetos conversam com a escultura moderna e contemporânea, os bidimensionais tecem relações com os lugares do debate pictórico.

Nesses anos, Racy manteve-se atento ao percurso artístico que se propôs ao coletar incessantemente tais materiais e acumulá-los em casa. Ao rearranjá-los, num movimento sutil e minimalista, o artista diz de nossas atividades cotidianas, de quem somos na cidade de hoje. Ao mesmo tempo, são trabalhos que em vez de discutirem o efêmero, buscam o permanente, falam da memória que habita nos objetos e o quanto eles próprios nos falam sobre o mundo que nos circunda (e que criamos). O ambiente da mostra de Racy é aquele de seu ateliê, com peças dispostas de maneira a salientar sua singularidade formal. Entretanto, são mais do que o poder de seu estímulo visual, pois percebemos que nelas há algo de estranhamente familiar.



Agnaldo Farias

Curador e crítico de arte

Edgar Racy trabalha com um material que é o elogio da transparência e fragilidade: o vidro. Desde o começo ele explora essa película diáfana, quase invisível que, no entanto, tanto veda o trânsito do corpo quanto faculta a passagem do olhar. Quanto a este, não se furta de um flerte com essa matéria gêmea: por ser aéreo, regozija-se deslizando por sua superfície, trespassando-o refratando-se, ou rebate-se em reflexos. Racy tensiona o material, submete-o ao seu próprio peso, e vai retirando como resultado as infinitas nuances através das quais esse corpo etéreo faz-se presente.
Mas, não é somente do corpo do material que suas obras tratam, e por isso a força da pesquisa. Afinal, a fragilidade do vidro implica em perigo para nosso próprio corpo. Do centro da sua beleza plácida irradia sua possibilidade de uma violência súbita, feitas de estilhaços e fagulhas microscópicas, capazes de reagir ao menor desafio.

Por isso cercamo-nos de tantos cuidados na contemplação dos seus trabalhos. Nosso rodeio receoso decorre da projeção virtual desse material: uma clareira feita de vazio e medo.



Museu Theodoro de Bona

Curitiba PR


Sobre o aspecto da utilização nas artes plásticas de materiais rejeitados na indústria, Edgar Racy os utiliza na sua produção artística. Usando mistura de várias ceras utilizadas na fundição de armamentos bélicos, constrói peças que exprimem o oposto ao que o material inicialmente teve como propósito,
Partes de armamentos bélicos reproduzidos inicialmente em cera matriz e em seguida substituídas pelo metal, se transformam em blocos de cera, coincidentemente da cor verde exército. A partir daí, utilizando a cor vermelha sobre a superfície verde, exprime fatos sobre o assunto, enfocando geralmente o oposto ao que o material teve como função inicial.
Algumas vezes, utiliza o próprio material para produzir palavras ou letras em forma de protesto, outras vezes produz peças que protegem o expectador ou simbolizam o efeito causado pela produção Bélica.








Mark